Causa mortis: trabalho. Por que as pessoas estão morrendo por um salário

As pessoas estão morrendo por um salário. Essa é a conclusão do professor de comportamento organizacional da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e um dos maiores especialistas em gestão de pessoas do mundo, Jeffrey Pfeffer. Sua estimativa é que o emprego acabe com a vida de 120 000 pessoas por ano apenas naquele país — um prejuízo de 180 bilhões de dólares, ou 8% do custo total com saúde.

Para chegar a esses números, ele avaliou dados coletados por organismos públicos e privados, corrigindo fatores como idade, gênero e classe social. O resultado da análise está no livro Dying for a Paycheck (HarperBusiness, 110 reais, sem edição no Brasil), lançado em meados de 2018. “A má notícia é que o trabalho está matando”, disse Jeffrey a VOCÊ RH. “E ninguém realmente se importa.”

Esse problema não estaria restrito à nação mais poderosa do planeta. Uma consulta rápida nos dados da Previdência Social no Brasil mostra que, nos nove primeiros meses de 2018, foram concedidas pelo INSS 8 015 licenças por transtornos mentais e comportamentais adquiridos no serviço — um avanço de 12% em relação ao mesmo período de 2017.

Já o afastamento por depressão e ansiedade aumentou quase 5 pontos percentuais. Há uma década, quando começaram a ser mapeadas, as doenças mentais representavam menos de 4% dessas situações.

Assim como nos Estados Unidos, a conta brasileira é alta. Em quatro anos (de 2012 a 2016), os gastos públicos ligados a transtornos psicológicos e comportamentais somaram 784,3 milhões de reais, o equivalente a 7% das despesas médicas do país.

Situações relacionadas ao dia a dia do trabalho, aos baixos salários e à falta de tempo para cuidar da própria saúde seriam os principais agentes de causa mortis. Parte, claro, é consequência da sociedade moderna, que exige indivíduos conectados 24 horas por dia.

As pessoas, acredita Sigmar Malvezzi, professor de psicologia da Universidade de São Paulo, têm dificuldade de se adaptar a um ritmo tão intenso. “Os eventos acontecem numa velocidade alta e a competitividade é grande.” Essas condições roubam o ser humano dele mesmo, a fim de colocá-lo a serviço de outros.

Variados estímulos repetitivos tornariam os indivíduos reativos, sem tempo de reflexão e, no limite, autoritários. “O que se observa é que os projetos de vida são pequenos”, afirma Sigmar. “A gente vive uma situação de desumanização.”

Contudo, outra parte é sequela da cultura corporativa instalada nos últimos anos. “Falamos ‘reter’, ‘pipeline’, ‘selecionar’, uma linguagem na qual as pessoas são tratadas como um recurso a explorar”, diz Marcelo Cardoso, ex-CEO do Hopi-Hari e hoje presidente da Chie, consultoria especializada em transformação organizacional.

A conjuntura se agrava conforme mudam as relações trabalhistas. Cada vez mais gente atua na chamada gig economy, fazendo bicos ou prestando serviços extras com a ajuda de aplicativos, como quem dirige pela Uber ou faz entregas pela Rappi. Isso resulta em uma quantidade maior de trabalhadores que precisam se virar por conta própria, não têm acesso a planos de saúde nem outros benefícios e sofrem de insegurança financeira.

“Os profissionais são vistos como únicos responsáveis por si mesmos, e isso intensifica a pressão”, afirma Anderson Sant’Anna, professor do mestrado profissional em Administração na Fundação Dom Cabral, onde também coordena o Observatório de Relações Indivíduo-Organizações-Sociedade.

Fora ou dentro do mundo empresarial, os humanos se transformaram em meras engrenagens.

Custo de manutenção

Toda máquina, até mesmo a humana, precisa passar por uma revisão. Quando isso não acontece, entra em parafuso. Criou-se até um termo para definir quem se exaure de trabalhar: burnout.

A rotina extenuan­te, o excesso de cobrança, a escassez de recursos são a combinação perfeita para a instalação de doen­ças crônicas (como diabetes, hipertensão e problemas cardiovasculares), que representam três quartos dos gastos com saúde nos Estados Unidos.

Para Jeffrey Pfeffer, esses males estão intimamente relacionados ao estilo de vida e à higiene mental dos indivíduos — duas coisas impactadas pelo trabalho. “Se você abusa de um equipamento e faz com que o custo de manutenção seja alto, você é demitido. Mas se abusa de alguém, causando desgaste, ninguém parece prestar tanta atenção”, diz o professor, ao concluir que as empresas são o mal, e não a vítima, da famosa inflação médica.

No Brasil, segundo Alberto Ogata, conselheiro de gestão da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV), essa perda poderia representar 6% da folha de pagamentos das organizações só no aumento de taxas de seguro de saúde. Além dos gastos, funcionários adoentados e estressados pioram índices que os líderes de recursos humanos adoram medir, como os de rotatividade e de produtividade.

Quem tem burnout, por exemplo, “questiona todo dia a própria capacidade, e isso tem impacto direto no desempenho”, diz Brian Heap, sócio da Gallup no Brasil. De acordo com um estudo da consultoria americana, os funcionários esgotados são 50% menos propensos a conversar com o chefe sobre suas necessidades de entrega e 63% mais propensos a faltar no trabalho por causa de doença.

Ao mesmo tempo, sua probabilidade de procurar um novo emprego é três vezes maior. Resultado: gente infeliz, improdutiva e entrincheirada.

Jeffrey calcula que os custos indiretos provenientes do desengajamento, da desmotivação e do presenteísmo sejam cinco vezes superiores ao montante das despesas médicas diretas.

Marionetes do trabalho

Um determinante na saúde das pessoas é o nível de controle sobre seus afazeres — o que Jeffrey chama de job control. Em sua análise, ele diz que, assim como o fumo é um fator importante para predizer o risco de doenças cardíacas, a autonomia sobre horários e local de trabalho e a clareza nas responsabilidades seriam tão ou mais relevantes para avaliar o nível toxicológico de um emprego.

Nem sempre o controle é explícito. Longos períodos de deslocamento, jornadas extensas, mudanças constantes e pressão por resultado também geram a impressão de comando. “O que mata é não ter uma visão de futuro”, diz Roberto Aylmer, professor na Fundação Dom Cabral e consultor de liderança da empresa que leva seu sobrenome.

“Se o trabalho é pesado e o funcionário sente que vai perder o emprego ou que não dará conta, o estresse é duplo.” Às vezes, nem descansar é possível, pois há a percepção de que e-mails e mensagens de WhatsApp precisam ser respondidos em tempo real.

Essa rotina está tão entranhada na cultura corporativa e na forma como gestores lidam com a equipe que é difícil perceber suas consequências. Por isso, Jeffrey Pfeffer defende políticas para limitar as horas trabalhadas — dentro e fora das organizações — e para acabar com a “glamourização” do estresse.

Menos radical, Jennifer Deal, pesquisadora do Center for Creative Leadership, nos Estados Unidos, acredita que o fim da microgestão e de prazos impossíveis tornaria o trabalho mais agradável. “As companhias precisam dar autonomia e colocar prazos específicos nas tarefas, para que sejam plausíveis”, diz. “As práticas de carreira devem ser transparentes e apoiar questões pessoais e financeiras.”

O Grupo Algar, que reúne empresas de tecnologia a turismo, tenta seguir esses conselhos. No fim de 2018, optou por dar autonomia aos 19 000 funcionários. Dessa forma, eles, que já contavam com práticas de home office e horário flexível, foram beneficiados com o Talento Flex, que abre a possibilidade do horário intermitente e de cada um acertar sua jornada.

“A gente via que algumas mulheres, por exemplo, paravam de trabalhar quando tinham filhos”, diz Eliane Garcia Melgaço, vice-presidente de gente do grupo Algar. A ideia é que, em vez de se demitirem, elas reajustem o expediente com o gestor de forma a facilitar a vida. Já o horário intermitente permite aos empregados entrar e sair do serviço conforme necessário, em acordo com o chefe.

Agora, o time de RH busca casos de sucesso para divulgá-los ao restante da corporação: o desafio é convencer a liderança. “Precisamos identificar pontos de resistência e criar um ambiente propício para a nova política”, diz Eliane.

O foco tem sido explicar a estratégia dessas ações, motivadas pela crença de que dá para cobrar pela entrega de resultados, e não pelo tempo no escritório. “Isso se torna um fator de atração, principalmente de jovens, que buscam liberdade.”

Em dezembro também foi lançado o projeto Estação, uma unidade especial da Algar Telecom que pretende testar modelos ágeis de gestão, com as equipes organizadas em squads, com menos hierarquia e mais liberdade. “Precisamos ser um bom lugar para trabalhar, porque é uma questão de longevidade do negócio”, diz a executiva. A expectativa é que cerca de 10 000 funcionários possam se beneficiar das novas modalidades.

Rever uma mentalidade enraizada há tanto tempo não é tarefa fácil. Ainda mais quando isso exige mudar radicalmente a forma como se enxerga o emprego: em vez de um local de cobrança, um de confiança; diferentemente de trabalhadores tratados como centros de despesa, eles seriam parceiros necessários para atingir a estratégia do negócio. O professor de Stanford sugere que as pessoas sejam geridas não com base nos custos que incorrem, mas como ativos.

Enquanto essa mudança não acontece, as companhias investem em ações sutis para minimizar os danos. Foi o que fez a Multiplus, empresa de planos de fidelidade. Há três anos, o escritório saiu do centro de São Paulo para Alphaville, a 26 quilômetros de distância. O risco de perder gente e sofrer uma queda na motivação era alto.

Isso fez com que o RH buscasse ouvir a opinião dos empregados. Um canal de comunicação foi aberto para receber as preocupações; em paralelo, o time de recursos humanos revia os benefícios. A Multiplus decidiu assumir o dinheiro gasto com pedágio e gasolina, e ainda contratou fretados.

Para compensar as horas de deslocamento, deu força ao home office (permitido por dois dias) e à flexibilidade de horário. Os chefes passaram por um mês de teste antes de o projeto ser estendido. “No começo, as pessoas achavam que quem ficava em casa estava de folga ou inacessível”, diz Heloisa Scarantino, gerente sênior de gestão de pessoas.

Essa crença foi se dissipando conforme a prática se consolidava. Hoje, os benefícios estão claros. “Equilíbrio entre trabalho e vida pessoal é nosso segundo fator de retenção, só perde para oportunidade de crescimento”, diz Heloisa, que comemora 89% de satisfação na última avaliação de clima.

Ativos preciosos

Além de mudar a cultura de comando e controle, as empresas teriam de repensar suas práticas de qualidade de vida, uma vez que a maioria delas foca o comportamento dos indivíduos, mas não faz uma mea culpa das condições corporativas.

“Você diz para as pessoas fazerem meditação, massagem, mas o problema é a organização do trabalho, com pouca transparência, comunicação fa­lha e sensação de injustiça”, afirma Alberto Ogata, da ABQV.

Uma alteração significativa exigiria a criação de indicadores médicos que fossem além do gasto com sinistros e afastamentos por licença. Afinal, a saúde, estudos científicos já provaram, engloba aspectos como relacionamentos, lazer, realização e estabilidade financeira — nenhum deles isolado entre si.

Uma das melhores formas de medir essa relação é perguntando diretamente aos funcionários. A autoavaliação, segundo indica Jeffrey em seu livro, é um preditor importante de problemas, podendo ser mais eficiente do que check-ups.

Essa é a abordagem do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, que desde 2010 mantém o programa Bem-Estar, premiado internacionalmente. Sua principal ferramenta é o questionário de autoavaliação que os mais de 3 000 funcionários preenchem.

Com ele, o RH analisa indicadores como sedentarismo e estado emocional. E, graças a ele, o time de gestão de pessoas colocou em prática coisas como aulas de canto e ioga e uma academia com orientação de um profissional para fortalecimento e fisioterapia.

O ambulatório conta ainda com médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e farmacêuticos. “Isso se alinha ao nosso lema, que é ‘quando somos bem cuidados, podemos cuidar melhor’”, diz Cleusa Ramos, superintendente de desenvolvimento humano e institucional do Oswaldo Cruz.

Mais de 50 profissionais foram certificados em coaching de saúde e bem-estar para atuar no programa. “Essa capacitação é para auxiliar o empregado a montar uma agenda única com o objetivo de melhorar sua vida”, diz Cleusa.

Ao longo dos anos, essa equipe, coordenada pelo gerente de qualidade de vida Leonardo Mendonça, começou a ser procurada com frequência para orientar em mudanças de hábito, com foco em atuação preventiva, o que trouxe às pessoas uma nova mentalidade em relação às consultas de rotina.

Para aumentar a adesão, o RH implantou um sistema de milhagem: as equipes concorrem entre si para ver qual teve mais participação e as vencedoras recebem prêmios. Os setores que apresentam problemas são acompanhados de perto e o gestor é chamado para conversar. Os resultados vieram.

Em 2010, a empresa tinha apenas 48% de adesão aos exames periódicos — que, aliás, são obrigatórios por lei. Hoje, ela é de 98%. Além disso, de 2010 a 2017, houve uma redução de 37% na média de pressão arterial, de 35% no colesterol e de 46% no tabagismo.

O nível de estresse, avaliado por meio do questionário, caiu 31%; já o absenteísmo passou de 3,6% para 2,4% a partir de 2013. Graças ao quadro saudável, o hospital passou três anos sem renegociar os valores do plano de saúde. No fim do ano passado, o programa foi ampliado aos dependentes e agora são 6 500 vidas atendidas.

Em primeiro plano

Casos como o do Oswaldo Cruz mostram que investir é a melhor estratégia no longo prazo. Em tempos de crise econômica e política, como esta pela qual passa o Brasil, torna-se ainda mais urgente propiciar um ambiente de segurança psicológica para os trabalhadores. Contudo, na prática acontece o contrário.

Na tentativa de equilibrar o caixa, as companhias entoam o mantra “cortar, cortar, cortar”. De acordo com uma pesquisa da consultoria de benefícios Mercer Marsh com 690 organizações no país, metade delas pretende redesenhar o programa de benefícios com foco no controle dos custos — muitas rebaixaram ou mudaram de operadora de saúde nos últimos três anos para economizar.

Apenas 38% planejavam expandir os programas voltados para o bem-estar nos próximos dois anos. A fabricante de cosméticos Avon segue esse caminho.

Há três anos, o RH notou um número maior de funcionários faltando no emprego para ir ao pronto-socorro, mas a ida ao médico não solucionava o problema e a visita se tornava recorrente. Foi quando veio a percepção de que era preciso melhorar a qualidade de vida.

“Se não temos um ambiente em que o funcionário possa cuidar de sua saúde, ele vai deixá-la em segundo plano, mesmo que diga que é prioridade”, diz Meire Blumen, gerente de saúde e bem-estar na Avon. As práticas e os benefícios foram consolidados num só programa, o Viva Bem.

A evolução começou do básico, com a reforma do ambulatório, que passou a ocupar um lugar mais visível e a oferecer consultas odontológicas, ginecológicas e de clínica-geral, além de coleta de exames básicos. Como o público é em grande parte feminino, há salas específicas para amamentação e creches.

Todas as informações ficam armazenadas em um sistema único, junto com atestados e dados de medicamentos comprados com o subsídio da empresa (de 75%), e são usadas em análises preditivas. A Avon ainda acompanha cerca de 600 funcionários e dependentes com doenças crônicas, que recebem orientação contínua.

“Mostramos às lideranças que isso não é uma questão de custo, mas de valor”, diz Meire. E os gastos diminuíram. O contrato do plano de saúde foi renegociado para o modelo de pós-pagamento, já que o conhecimento da população possibilita prever o uso. Entre 2017 e 2018, o sinistro teve queda de quase 14% com exames, 19% com consultas e 13% com internações.

De quem é a responsabilidade

Se nas últimas décadas, em meio à competição acirrada pela globalização, o discurso em relação à carreira foi se alterando, com ideias como “empregabilidade” (que colocam a responsabilidade da vida no trabalho sobre as próprias pessoas), para Jeffrey Pfeffer isso não exime as companhias dos efeitos que seu ambiente causa aos indivíduos.

“Esse argumento presume que se pode facilmente encontrar outro emprego, o que não é verdade”, diz. Além disso, há uma série de fatores psicológicos que dificultam a troca de serviço, especialmente quando o trabalhador está doente, estressado e esgotado. Segundo Jeffrey, as pessoas não podem ser responsabilizadas por questões de estrutura ou gestão.

Mas o professor de Stanford não acredita que, sozinhas, as organizações farão muita coisa para rever esse quadro. Seria preciso os funcionários se organizarem politicamente. Um dos motivos de sua descrença está na competitividade exacerbada e nas mudanças aceleradas, que fazem com que o pensamento no mundo corporativo seja de curto prazo.

“Quando as empresas precisam se reportar aos acionistas a cada trimestre, isso cria um conflito de interesses”, diz o consultor Roberto Aylmer. O padrão é cobrar (e priorizar) o retorno financeiro imediato. Para Anderson Sant’Anna, da Dom Cabral, isso prejudica a todos: “Pode parecer vantagem no curto prazo, mas para o negócio é danoso.

O risco é de minar a inovação e a competitividade”. Ambientes inseguros provocam medo de inovar e arriscar com novas ideias. E nenhum ser humano é capaz de pensar — nem em inovação nem em nada — com a cabeça cheia e o corpo cansado. O organismo entra em colapso.

Por isso, Jeffrey Pfeffer insiste: “Só se cria valor e se oferece o melhor serviço por meio de melhores funcionários”. Mirar a redução de custos não acrescenta perenidade ao negócio, pelo contrário. Da mesma forma, cortar gente traz consequências nefastas. É preciso começar a impor limites — a pensar na sustentabilidade humana.

(Fonte: Exame)

Por |2019-04-30T15:49:58-03:0030 de abril de 2019|Saúde no trabalho|Comentários desativados em Causa mortis: trabalho. Por que as pessoas estão morrendo por um salário